Projeto Porfírio Pardal Monteiro. Estação Marítima de Alcântara. Prolongamento da Galeria. Arquivo do Porto de Lisboa.

O Projeto de Arquitetura de Pardal Monteiro

Projeto de Porfírio Pardal Monteiro. Estação Marítima de Alcântara. Prolongamento da Galeria. Arquivo do Porto de Lisboa.
Nos inícios da década de 1930, a Agência Geral do Porto de Lisboa expôs ao Ministério das Obras Públicas e Comunicações a urgência de dotar a capital com gares marítimas para receber passageiros. Esta necessidade não era recente: o crescente tráfego de mercadorias e de passageiros em navios de grande envergadura notado desde a segunda metade do século XIX tinha levado à apresentação de propostas para o desenvolvimento portuário em Lisboa. 

Nas primeiras décadas do século XX, com a passagem da exploração do porto de Lisboa para um conselho de administração sob alçada do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, concretizou-se um conjunto de medidas para combater a sua desorganização. Apesar de a drenagem no cais de Alcântara ter possibilitado a atracagem de navios transoceânicos desde 1918, o crescimento da circulação de passageiros acentuou a necessidade de instalações modernas e adequadas ao seu acolhimento.

Perante a hipótese de transferência do Arsenal de Marinha para a margem sul do Tejo – o que só ocorreu no final dos anos 30 –, surgiu a ideia de construir uma gare marítima central com ligação às linhas férreas, exclusiva para passageiros, entre a Praça do Comércio e o Cais do Sodré. Em 1931, por ocasião do I Congresso Nacional de Engenharia, o engenheiro civil Afonso Cid Perestrelo (1890-?), professor no Instituto Superior Técnico e vogal do Conselho Superior de Obras Públicas, propôs a implantação de uma nova gare marítima no local então ocupado pelo Arsenal de Marinha, em articulação com um plano geral que organizasse os serviços portuários de forma definitiva. A Agência Geral do Porto de Lisboa, dependente do Ministério das Obras Públicas e Comunicações, apresentou, em 1932, estudos para duas gares marítimas: uma em Alcântara e outra na Rocha do Conde de Óbidos. Estes estudos não foram aprovados pelo Conselho Superior de Obras Públicas: o parecer, redigido por Cid Perestrelo, defendia a construção de uma gare central única junto da estação do Cais do Sodré, inaugurada há poucos anos, por permitir a ligação direta ao transporte ferroviário.

Para resolver o assunto, o Ministro das Obras Públicas, Duarte Pacheco (1900-1943), nomeou uma comissão para elaborar um plano de melhoramentos do porto de Lisboa, em 1933. As sugestões levaram-no a encarregar a Agência Geral do Porto de Lisboa de estudar uma gare marítima para Alcântara. Também incumbiu a Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais de contratar um arquiteto para elaborar projetos para essa gare em Alcântara e para a gare no Cais do Sodré. Mantiveram-se altercações entre a Agência Geral do Porto de Lisboa e o Conselho Superior de Obras Públicas: a agência defendia a construção de mais uma gare na Rocha do Conde de Óbidos, que era considerada descabida pelo conselho, que advogava critérios de economia e defendia que as construções tivessem um caráter definitivo. Como resultado, Duarte Pacheco ponderou o planeamento das três gares – Cais do Sodré, Alcântara e Rocha do Conde de Óbidos. Foi criada uma delegação para construir as gares marítimas, chefiada pelo engenheiro Eduardo Rodrigues de Carvalho (1891-1970), e para a qual se contratou o arquiteto Porfírio Pardal Monteiro (1897-1957), presumivelmente a pedido do ministro.

Duarte Pacheco ponderou o planeamento das três gares – Cais do Sodré, Alcântara e Rocha do Conde de Óbidos. Foi criada uma delegação para construir as gares marítimas, chefiada pelo engenheiro Eduardo Rodrigues de Carvalho (1891-1970), e para a qual se contratou o arquiteto Porfírio Pardal Monteiro (1897-1957), presumivelmente a pedido do ministro.

Pardal Monteiro ganhara notoriedade com o projeto dos modernos edifícios do Instituto Superior Técnico, para o qual fora convidado diretamente por Duarte Pacheco, então diretor dessa instituição. Iniciou a carreira ao serviço da Caixa Geral de Depósitos, tendo depois projetado a estação do Cais do Sodré, o Instituto Nacional de Estatística e a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, todos em Lisboa. Na altura da encomenda das gares, o arquiteto foi também encarregue dos estudos para uma Cidade Universitária na capital e do arranjo dos ministérios na Praça do Comércio.

Fotografias de Arquivo da Construção das Gares. Fotógrafo: Mário Novais (1899-1967). Data: 1940-1943. Estúdio Mário Novais/Biblioteca de Arte e Arquivos da Fundação Calouste Gulbenkian
Fotografias de Arquivo da Construção das Gares. Fotógrafo: Mário Novais (1899-1967). Data: 1940-1943. Estúdio Mário Novais/Biblioteca de Arte e Arquivos da Fundação Calouste Gulbenkian

Fotografias de Arquivo da Construção das Gares. Fotógrafo: Mário Novais (1899-1967). Data: 1940-1943. Estúdio Mário Novais/Biblioteca de Arte e Arquivos da Fundação Calouste Gulbenkian

As gares marítimas seriam inovadoras no país, devendo constituir uma «porta de entrada» impactante nos passageiros. Pardal Monteiro e Rodrigues de Carvalho elaboraram um primeiro projeto extenso com auxílio de engenheiros especializados, com base no complexo programa fornecido pela Agência Geral do Porto de Lisboa. Para além de serviços como a alfândega, pretendia-se integrar percursos distintos para separar os passageiros de 1.ª e 2.ª classe dos de 3.ª classe.

Pardal Monteiro, conjugando uma formação clássica com o contacto que teve com a prática arquitetónica coeva internacional, revelou-se defensor da aplicação de técnicas modernas para que se realizassem obras adequadas ao espírito do tempo, sem desvalorizar a importância do contexto nacional.

O ineditismo deste tipo de edifício ditou que se tivessem em conta exemplos de gares marítimas estrangeiras recentemente construídas. O arquiteto e o engenheiro estudaram plantas, com foco na organização e na distribuição, e realizaram uma viagem de estudo pela Europa em setembro de 1934, passando por Espanha, França, Bélgica, Holanda e Itália. Na memória descritiva do projeto, Pardal Monteiro destacou a influência das gares de Verdon, Cherbourg e Le Havre, em França, e das gares de Génova e Trieste, em Itália, as mais recentes do conjunto visitado. Apenas as gares de Génova e Le Havre eram especialmente destinadas a passageiros. Como consequência direta do observado no estrangeiro, refira-se o alargamento das plataformas das gares propostas para Lisboa ou a alteração da cobertura em terraço pelo recurso a abóbadas. As propostas aproximaram-se de uma estética despojada e racionalista, procurando que o alçado espelhasse a planta e as distintas funções. Pardal Monteiro, conjugando uma formação clássica com o contacto que teve com a prática arquitetónica coeva internacional, revelou-se defensor da aplicação de técnicas modernas para que se realizassem obras adequadas ao espírito do tempo, sem desvalorizar a importância do contexto nacional.

Ambas as gares foram distribuídas por dois pisos, cada um com funções específicas: no piso térreo localizaram-se os serviços gerais e a receção de bagagens, e o piso superior integrava o hall de embarque da 1.ª e 2.ª classe com serviços alfandegários, agências de turismo e de câmbios, correios e venda de lembranças. Previa-se que esses passageiros tivessem acesso direto ao navio através de um passadiço suportado por uma grua móvel. A gare da Rocha seria, ainda, dotada de um restaurante. Para a gare de Alcântara, foi idealizada a construção de uma torre semáforo no topo oeste, como sucedia em casos estrangeiros, mas que não teve concretização. Em ambas, os navios apenas atracavam por um dos lados, estando o lado oposto virado para terra. Os interiores foram cuidadosamente estudados, com detalhes ao nível da iluminação e da decoração de pavimentos e de elementos como guardas de escadas. Como sucedeu noutras obras que projetou, o arquiteto considerou a colaboração de artistas plásticos para uma valorização decorativa dos espaços.

O projeto foi concluído em 1936. Nessa altura, Pardal Monteiro apresentou também um plano de urbanização do porto de Lisboa correspondente à doca de Alcântara, no qual previa ligar as duas gares através de uma galeria com cerca de 1 Km de extensão e com sistema de transporte elétrico, à altura do primeiro piso dos edifícios. Esta ideia não saiu do papel. Em paralelo, Cid Perestrelo continuava a insistir que a única gare necessária seria a do Cais do Sodré. Foi novamente relator de um parecer negativo sobre o projeto, numa altura em que Duarte Pacheco assumira a presidência da Câmara Municipal de Lisboa e fora substituído por Silva Abranches na pasta das Obras Públicas. Cid Perestrelo criticou o facto de a solução não cumprir as funções estipuladas para este tipo de equipamento, nomeadamente a falta de comunicação ferroviária, bem como os custos excessivos e a duplicação gerada pela construção de duas gares.

O regresso de Duarte Pacheco ao Ministério das Obras Públicas e Comunicações coincidiu com a preparação das comemorações do duplo centenário das fundação e restauração de Portugal, em 1940, cujo plano pressupunha a construção de, pelo menos, uma gare marítima. Apesar da prioridade concedida ao investimento nas gares, a construção não ficou terminada a tempo das comemorações. As gares de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos foram inauguradas, respetivamente, em 1943 e em 1948, sem a pompa habitual destes acontecimentos. O fluxo de turistas tinha cessado desde 1941, mas permaneceu o fluxo de outros passageiros: por exemplo, antes da abertura, a gare de Alcântara serviu para receber mutilados de guerra. A gare marítima do Cais do Sodré nunca saiu do plano das intenções, embora figurasse no mapa do Plano de Melhoramentos do Porto de Lisboa, lançado pela Agência Geral em 1946.


Texto de Ana Mehnert Pascoal